sábado, 31 de outubro de 2015

Separate Ways - Parte I

  O dia dos mortos.

"Erní observa o sol em seus últimos segundos no horizonte. O Morro da Memória de Aurora era o ponto mais alto da cidadela de Mikistlicatán; de lá era possível observar todos os preparativos finais para Lo día de los muertos. O povo da cidadela acreditava que durante a noite deste dia, os mortos comungariam o mundo que outrora já lhe pertenceu. Porém também sabia-se que quando voltavam a estar de pé, os mortos não possuíam espírito ( Yol ) e portanto, apenas o pior da humanidade carregavam em si : Cruéis, assassinos, vingativos, canibais, e tudo de ruim que suas carnes e ossos putrefeitos ainda permitissem fazer. Por essa razão,  os moradores de Mikistlicatán saíam da muralha de pedra-e-cipó e enterravam seus mortos no Jardim da Piedade, a cerca de novecentas braças de distância da cidadela. Festejavam a vida e a morte por dentro, enquanto os renascidos caminhavam pelo lado de fora.
Porém havia uma morte irreversível dentro da cidadela. Uma jovem; que ninguém mais lembra seu nome, origem ou destino; morrera dentro da estranha estrutura; que como contam lendas e boatos, deveria ser uma das fundações da Colmeia que seria instalada ali. Misteriosamente; algo interrompeu a construção, que se tratando dos operários da Colmeia era bastante ligeira; e ali deixou uma marquise inacabada, com seus muros de metal cromado já enferrujado e gasto.
O motivo no qual levara a jovem para dentro das entranhas da sombria marquise era alvo de muitos boatos e histórias, sempre escutadas de uma conversa de taverna ou em sussuros dispersos pelos cantos escuros da cidadela. Uma coisa na qual todos concordavam; pois trazia rastro de existência à lenda; eram os gritos de mulher que vinham de dentro da marquise, sem hora para acontecer; mas tudo durante a noite. O barulho das músicas, danças, tagarelas bohêmios e bêbados fazia abafar um pouco o som dos berros. Por isso, evitavam andar perto das muretas de ferro; excetuando-se os jovens meninos e meninas que se aventuravam e desafiavam-se a se aproximar o máximo possível para ouvir de perto um agourento grito. Mesmo os mais valentes se arrependiam, pois o grito era evidentemente de origem humana, porém contia em si uma natureza sofria e sombria.
O sol se pusera inteiro, e a noite esticava seu véu por toda a Federação. Erní se levantara e estava ansiosa para ir atrás de irmã (Gêmea) Marí. Quando se virou, viu algo totalmente estranho e perturbador. Três homens de togas vermelho-vinho e capuzes que cobriam todo o rosto estavam lá, parados. Havia a sensação que estavam a observando por horas; e como eram tão silenciosos...O medo congelou seu corpo; porém em milésimos de luta interna tentou um movimento rumo ao penhasco.

Nem pode tentar entender exatamente o que estava acontecendo ou pelo menos fugir; um baque por trás e desmaiara."

sábado, 24 de outubro de 2015

A Natureza de Gastão.

"Três horas da manhã. Gastão está sozinho no palco do teatro, rodopiando de braços abertos; cantando ou tendo diálogos solitários. Ora uma comédia, ora uma tragédia. No meio de um recital, lembrou-se do papel em seu bolso; parou diante as cadeiras acolchoadas vazias e com ar solene proclamou seu manifesto :

- Oras. mundo indeciso, ou faz-me apaixonar por ti de uma vez ou escarra-me daqui sem demora ! Explica-me o sentido de toda sua violência parecer tão digna do inferno quanto de uma tela do mais inspirado artista. ( Suspira com desgosto e continua )
 - Oferece-me os mais saborosos banquetes e orgias; e já em estado de quase total embriaguez me dá como derradeiro presente o remorso. Remorso de ter me aproveitado ao máximo dos meus prazeres de mortal; ou por eu ser apenas o humilde eu mesmo. Se estou a me refestelar animalescamente entre Marzipãs de cacau, vinho, música degradante ou os seios de uma prostituta; saiba, cruel mundo, que já enojei-me da premissa de amor que sempre me prometera e me faz sofrer noites acordados e dias em desânimo total. ( Gesticula como em dança, e olha com ira para a "plateia" )
- Após tamanha decepção, recuso-me novamente a perder meu sono, aguardando a sorte soprar em meu favor. Meu sonos tornam-se hibernações profundas, e meu despertar é desanimado e lerdo. Sem razão para me levantar da cama, encho a taça de vinho e nego ao mundo o prazer de meu sofrimento. Esse ficará guardado apenas comigo. Invejo aqueles que já morreram e não se fazem obrigados a serem conduzidos pelo rebanho do próprio destino. ( As lágrimas escorrem e começa a soluçar ) Porém não o darei mais este sabor, e minha tortuosa viela de vida acaba agora ! ( Trêmulo, saca um punhal cuidadosamente afiado e corta a própria garganta, com paciência e calma odiosa ).

O sangue escorre pelo palco e mancha a madeira de vermelho-vinho.

Da plateia ouve se apenas o lento bater de palmas de Mefistófeles, com seu tamanho inumano e silhueta diabólica coberta pelas sobras do lugar mal iluminado que ocupa.


sábado, 3 de outubro de 2015

O Canto Perdido.

"A outra vida soprou-me uma canção desesperada; que outrora fora embalada pelas primeiras Vespas nos esgotos e arredores da primeira Colmeia, ainda antes do primeiro horror.

"De um mundo perdido, falamos.
 Sem ruas ladrilhadas, só o ranger de máquinas;
 O trabalho incessante
 O silêncio agoniante,
 O medo que consome espaço;
 O esperamos das profundezas
 Do Oceano;
 Mas de nossas entranhas
 Vem o cheiro que o atrai;
 Os ferrões nos rasgam
 Mas é o mel que sai.

 A cruel roda do Destino,
 Acende e apaga a Lua,
 Arbitra por tudo que há
 Purifica de forma nua
 Em forma de duas expressões;
 O cara-e-coroa do existir
 E brilho final dos seus olhos
 Nas lanças dos Zangões.

 O sangue ainda é fresco
 E nem por mais mil anos esqueceremos
 Do horror que mostrou sua primeira face,
 Criado na Cidade das Brumas
 Pela desobediência ao Arquimago;
 Mistério que se fechou com Abelha-Rainha,
 Em sua mão,
 Porém nasceu puro
 Nos olhos do Centurião.

 Que algo tenha piedade
 Do que sobrará de nossas almas."

 Um terremoto interrompeu a leitura de Mikhail, e quando olhou para a parede norte da Colmeia, viu a coisa se erguendo."




domingo, 6 de setembro de 2015

O pássaro vermelho de Persopunto.

"Sob a vontade dúbia dos Grandes, vivia o povo de Persopunto.
 Banhados pelo Mar do sul e com um grande bosque lotado de laranjeiras à orla do vilarejo; essa pacífica gente compartilhava de comunhão amorosa com a natureza da terra e do mar. Porém a natureza divina mantinha seu grande olho panóptico com singular interesse sobre tão brando povoado.
 O interesse divino já transparecia sua sentença com uma particular condição : Os pássaros da península apenas sobrevoavam o povoado; nunca por lá pousavam. Em uma noite; mais certamente, O festival de teatro infantil; durante um recitação poética de um jovem envergonhado, algo surge para tornar seu medo de plateia em um medo superior : Um ser com máscara de barro em formato de aberto sorriso vazio, com negro e surrado chapéu que lhe cobria toda a cabeça e uma roupa suja de jardineiro estava à distância observando a todos. Incomodado, o prefeito Jaime Carlo foi ter com o forasteiro. Este se limitou aos versos :

Na terra das laranjeiras, as aves não descansam;
Incorreto é o homem que vive sem corrupção
Assistam, enquanto as cinco flores dançam,
Seu desejo virar maldição.

  "Após essa estranha profecia; o sujeito caminhou calmamente em direção ao mar, até sumir dentro das águas.
  Os dias passaram até a primeira experiência de medo daquela gente virar apenas obsoleta memória. Porém a natureza do oculto tem forte palavra, e numa nublada manhã pousa no relógio de sol da ágora um grande pássaro vermelho. Devagar e com difusos sentimentos, as pessoas chegam para observar a belíssima e curiosa ave. Alguns trazem sementes, de abóbora, girassol e laranja; e de bom grado a ave come todas. O mistério que trouxe o pássaro consigo acabara por se tornar um culto de bom sinal pelo inocente povo. Todas as colheitas possuíam tributos à notória ave.
Até o fatídico dia.
As provisões para a grande seca sumiram do estoque, em uma noite. Um falatório desesperado possuiu os arredores dos cinco celeiros, então o prefeito chama o povo para um inquérito que acabara se rumando a um acusatório entre vizinhos. Com perguntas sobre os afazeres daquela noite e quem viu quem em que lugar; o nome de um morador solitário acabara por ecoar algumas vezes seguidas na multidão.
Guido Sotis.
 A massa se voltara para o franzino rapaz ; e seu suor escorria por seu bigode e cavanhaque. As perguntas o pressionavam e o dedo do prefeito apontado para ele ganhava um contexto sentencial. Aos gritos de inocência e armação o jovem era levado pelos homens para ser questionado sobre o paradeiro das provisões.
  Preocupado, o povo foi juntar o que poderia sobrar dos mantimentos.
  Mesmo com o alvoroço, o pássaro não movia uma pena.
  Guido insistia que nada havia roubado, embora ninguém pudesse provar o contrário. Em uma condenação injusta do enraivecido prefeito Jaime Carlo, Guido seria executado,em cinco horas na ágora. Aos berros, fora amarrado na base do relógio de sol, aonde estava o misterioso pássaro.
 Cinco horas,marcava o relógio,e a ave não estava mais lá.
 Sob forte pressão e revolta popular, Guido aceitava e confessava seu crime.
 Balançando como um pêndulo, Guido jazia em contraste ao crepúsculo.
 A comida não retornara, e as lembranças do julgamento do solitário rapaz morriam rapidamente na fome que o povo enfrentava durante a seca. Crianças adoeciam até a morte, enquanto seus enfraquecidos pais lutavam pra manter viva a família com laranjas restantes do fim do outono.
 De longe, observava Guido. Olhava com certo desgosto para o povoado, mais por seu sofrimento do que pela condenação injusta. Guido vira o prefeito vender na calada da noite, e aos poucos, as provisões a um comboio encapuzado. Teve medo de contar, mas quando finalmente sua voz faria justiça, estava com uma corda na garganta. Vestiu uma roupa vermelha e suja de jardineiro, botou seu chapéu...E suspirou antes de por a máscara risonha de barro e sumir pela floresta com o grande pássaro vermelho sobrevoando-lhe."

Escrito sobre os efeitos influentes da lua crescente.


 

sábado, 22 de agosto de 2015

O Primeiro Horror.

"Não posso dormir com o barulho das águas.
 As ondas rancorosas ressoam as mágoas,
 De pobres almas que no mar ganharam sentença
 Então me levanto, e dou ao oceano minha presença.

 A madrugada fria ganha força com vento,
 Mesmo em devaneio percebo o aumento
 De maré se arrastando lânguida pela areia,
 E das sórdidas águas emerge uma sereia.

 Não como nas histórias de fantasia,
 Pois dessa mulher eu sentia a agonia.
 Seu espírito jazia alquebrado
 E seu corpo, ao mar acorrentado.

 Sua voz rouca implorava por ajuda,
 Não consegui mover, senti a garganta muda.
 A farroupilha sereia começou a deformar,
 Seu fraco corpo e a areia estavam a se misturar;
 Num instante de horror e pânico excessivo,
 Meu corpo logo me tornou vivo;
 Corri para a choupana beira-mar
 Tranquei a porta
 Esperei a noite acabar.

 O medo me fez curioso, embora sentisse uma forte cólica;
 Mas venci meu receio, fui entender a aparição diabólica.
 Na mesma hora, do seguinte dia, retornei à praia;
 Logo em seguida, vi algo preso na raia
 Que coloquei para delimitar o lado seguro para nado,
 Mas naquela hora
 Nadar não seria meu fardo.

 Um corpo singularmente familiar,
 E quase vomitei
 Quando vi
 Meu corpo estava a balançar.
 Virei-me para ceder ao medo novamente,
 Porém, perto da choupana vi algo surpreendente ;
 Uma figura se movia em lentos passos :
 Possuía duas cabeças
 E seis braços.
 Proferia sem cessar, um canto em línguas estranhas,
 Então logo senti um calor nas entranhas.
 Sangue.

 Acordo suado e pela janela só vejo o dia raiando,
 Olho pela janela e me sinto aliviando.
 Tudo não passara de sonho,
 Exceto pela poça de sangue em minha cama."



A Lenda de Kathakós

"Sob a terra, descansava Kathakós, a Deusa antiga da pureza.
 Nascida de uma espécie surreal de fogo,
 Que pode arder até embaixo d'água;
 Inspirava o sonho dos apaixonados
 E guardava consigo os suspiros amorosos.

 Diziam que vivia sob o Bosque dos Inseguros,
 Ante a trilha que levava direto ao povoado.
 Suas canções poderiam ser ouvidas,
 Quando os morangueiros estavam em flor;
 Mas só aparecia do noite, e apenas a um homem,
 Cuja música tocasse seu coração de opala.

 A mentira se disfarça de gracejo;
 O lobo se disfarça de cordeiro;
 E o veneno ganha gosto de licor.

 Se os olhos versam sobre o pudor de alguém,
 Não devia ter olhos, o jovem Sêftis.
 Sua natureza concentrava uma arte bela
 E obscura.
 Sua voz se confundia com o canto dos pássaros
 E suas palavras, com o sibilar das cobras.

 Em uma noite de inspiração, foi ao Bosque dos Inseguros;
 Com seu bandolim nas mãos;
 Cantou sozinho entre as altas árvores;
 Até a fome lhe fazer parar para colher morangos.

 Dentre as árvores sai uma estarrecedora figura :
 Uma mulher com o dobro de tamanho do jovem;
 Uma pele cinza-claro,
 E uma sorte de gemas encrustadas em todo o corpo.
 Seus cabelos eram de cor verde-mar, com um brilho intenso;
 Possuía três olhos, cujo um era em sua testa,
 Aparentando ser feito de cristal púrpura.

 Sêftis recuava, ofegante.
 Então a grande mulher para;
 Gentilmente encosta a ponta dos dedos na garganta,
 E canta uma melodia poderosa,
 Que vai além de qualquer uma que o jovem já ouvira.
 A imensa mulher revela ser a Deusa Kathakós;
 E mais, jura amor ao jovem de canção encantadora;
 Oferece-lhe o que existe de mais valioso.

 As visitas de Sêftis ao bosque ficam mais comuns,
 Leva a Deusa uma variedade de presentes,
 E sempre que possível, pede algumas das joias
 Que enfeitam seu corpo.
 As joias são partes da Deusa, não adorno.

Enciumado e ganancioso, o jovem de língua afiada;
Fala coisas à Deusa,
Coisas imundas e desgostosas.
Até que ela comece a sentir algo novo...

Tristeza.

Na noite seguinte, Kathakós não vai ao encontro do jovem,
Mas esse a procura por toda a noite.
Canta às árvores palavras de arrependimento
Que não poderá dizer a quem devia ouvir.

A mística mulher aparece no fim da canção,
E canta algo que diz perdoar o rapaz.
Ela ajoelha e estica a mão
Ele vai devagar ao encontro...
As mãos se tocam.

Com a outra mão para trás das costas,
Sêftis puxa seu punhal e o enterra
No olho de cristal da Deusa,
Fazendo a gema cair na grama.
O jovem a recolhe e corre em disparada.

Com estranha dificuldade de se mover,
E um som baixo de choro,
A Deusa fica de joelhos em meio a floresta
Esperando seu amado voltar
Para lhe pedir desculpas mais uma vez.

O dia amanhece e ele não volta.
Os dias passam e ele não volta.
Os anos passam e ele não volta.

Kathakós volta para o subterrâneo de onde veio
Chora para o fogo,
Lamenta.

Incapaz de cantar outra vez,
A Deusa se parte em milhares de cristais escarlates.
Diz a lenda, que esses cristais virariam os corações
Dos verdadeiros poetas,
Pois são puros como Kathakós foi;
Sem vingança,
Sem medo,
Amando do primeiro ao último minuto."

Dedicado ao coração mais puro que já conheci.
C.

domingo, 16 de agosto de 2015

A Colmeia - Final

Chuva de Malaquita.

"Quando cessarem os risos
 As pernas tremerão;
 O mundo será puro outra vez,
 Mas as Vespas ficarão." - Juramento de passagem das Vespas.

"Aurora chorava e sentia seus joelhos falharem.
  Queen Bee não possuía a mínima expressão. Pudera; também, afinal era uma machina.
   Não existia apenas uma Queen Bee. Esta era um androide funcionário como qualquer outro, mas usado por unidades individuais. As próprias machina se recriavam e estabeleciam uma autocracia silenciosa e violenta. Porém a real mão que move os cordões está a aparecer.
  A luta de lança contra ferrão se desenvolvia ao fim da tarde; enquanto a Colmeia se retira para suas casas para tomar banho, jantar algo quente e dormir em aconchego visto que a tempestade está vindo; Queen Bee e Aurora valsam perigosamente num desfiladeiro mortal. Por dentro da máscara, a última Vespa daquela Colmeia sua e seu rosto treme sentindo a morte caminhar a passos largos em sua direção. A Abelha Rainha não pisca, move um lábio ou músculo da face sequer. É uma perfeita boneca ; produzida para não ceder perdão a ninguém. A lança branca da Rainha machina passa a milímetros de Aurora, e esta aproveita para enterrar seu ferrão na garganta da adversária. O alaranjado Mel escorre e suaviza o perturbador rangido metálico do dilacerado pescoço robótico; derrama como fosse um mais requintado e nobre sangue e cobre o vestido listrado de branco e amarelo da Rainha. Uma rajada de vento frio alerta Aurora sobre a tempestade e esta corre desesperadamente para um canto do circular muro branco da colmeia; e habilmente o escala, nas partes que possuem rachaduras e sulcos que auxiliam sua subida. No topo do muro olha para a cidade e a vê esvaziando com a primeira hora da noite. Uma distante fábrica parece ter iniciado as atividades, quando todas estão já paradas. Uma nova Queen Bee está sendo produzida; e isto proporciona um hiato de tempo para que Aurora comece a correr desesperadamente e aos prantos , para o gabinete da Rainha, no centro.

  Professor Tylor chega em sua casa; sujo, malcheiroso e encharcado de suor e medo. Reflete sobre o turbilhão de fatos dos últimos dois dias e sente uma fraqueza tomar conta de seu corpo. Sente-se sozinho e desesperado, e vai à janela tomar ar. Vê uma sombra pular pelos telhados das casas, e num misto de espanto e alegria; corre para a porta, magnetizado pela figura sombria, mas quando toca na maçaneta ouve pingos de chuva atingirem a rua. Uma estranha chuva verde começa a cair na Colmeia.

  Aurora corre rápida e agilmente pelos cantos remotos da cidadela visando o contro, quando ouve um relâmpago e um lampejo sai das nuvens de tempestade e acerta o mar, a uns quinhentos metros do muro da Colmeia. Uma fina chuva verde começa a cair, e Aurora se lembra imediatamente do ditado de sua mãe : "Quando começar a tempestade esverdeada, melhor estar mascarada." Pôs a máscara em rosto e sentia os suaves pingos acertando o desgastado metal.
 Só a jovem Vespa sabia o que iria acontecer agora, mas mesmo assim, correu em direção a torre do gabinete.

  A chuva de malaquita esfumaçava quando acertava a água do mar. Da borda da praia ao lado da Colmeia, algo começava a emergir. Uma abominável figura de tamanho e proporções indescritíveis irrompe da água. Sua pele era um misto de marrom e verde, feita de material que parecia tanto orgânico quanto rochoso. Possuía doze braços, seis de cada lado; e de cada um desses, um ferrão semelhante ao das Vespas, porém saídos das costas da mão. Sua cabeça era semelhante a de uma formiga pote-de-mel do deserto, porém possuía um espécie de barbatana que saía pela cabeça e descia até metade das costas. Esta besta era a encarnação de todo o desespero que existia, e as Vespas, desde a antiguidade o chamavam de Snasitir'Bh. A imensa besta proferia sons que se pareciam com uma linguagem; porém impronunciável às bocas humanas. Em poucos passos estava na borda da Colmeia. Seu corpo abrira milhares de poros e deles saíam imensas formigas pote-de-mel, marchando para dentro da cidade. Os moradores da Colmeia enlouqueceram com a insana imagem, e desesperadamente corriam em círculos, buscando abrigos ou dispersando seu desespero. Os que iam ao portão eram rapidamente empalados pelas lanças dos Zangões, que estavam a tapar qualquer possível saída. As formigas atacavam qualquer pessoa; e depois de matar, enterravam uma espécie de ferrão abdominal e drenavam o que seria o sangue, mas por alguma reação substancial com o ferrão, o sangue tornava-se o combustível Mel.
  Os trovões caíam violentamente, as formigas chacinavam todos e a demoníaca e imensa criatura proferia palavras perturbadoras em uma língua desconhecida, com as mãos agarradas aos altos muros.

  Aurora apenas ouvia o horror desencadeando-se pela Colmeia : Os gritos histéricos, os apavorantes chiados das formigas e aquela língua perturbadora. A Vespa, entretanto, juntou coragem para superar o desgaste físico e o medo e continuar subindo as escadas da torre. Na porta do gabinete, ouviu um curioso som de música melancólica, e devagar abriu a porta. Um androide operário tocava um clássico instrumental ao piano e parecia ignorar a catástrofe subsequente. Aurora aproximava-se devagar e sorrateiramente da machina , quando sentiu uma forte dor no peito. Quando, tremendo, olhou para baixo, viu sangue escorrendo pela roupa e um pontiagudo cristal atravessando seu coração. O corpo da jovem Vespa desabou na poça de sangue, e por trás estava a nova Queen Bee, com um ferrão semelhante ao das Vespas, porém feito de um cristal azul. O sangue de Aurora espirrou em seu rosto inexpressivo.
  Queen Bee e o androide pianista dirigiram-se para a outra porta do gabinete.
  No terraço da torre, Os dois androides olhavam fixamente para a ciclópica criatura, que quando avistou o par, parou de proferir a linguagem estranha. Mais dois machina operários trouxeram para o terraço o piano do gabinete, e o robô pianista voltou a tocar. Uma sonata fria e angustiada se mistura à carregada atmosfera que estava pela colmeia. Os corpos ficaram largados pelas ruas, e a chuva malaquita se misturava ao mel e sangue que se derramava ao lado dos corpos de homens, mulheres, crianças, velhos, jovens, sonhadores, músicos, cozinheiros,atores, atletas, pais, mães, filhos...As formigavas voltavam aos poros do imenso Snasitir'Bh, e quando a última entrou no corpo da besta, ela se dirigia ao horizonte do mar, para descansar novamente nas profundezas. Quando a criatura sumia da vista, todas as machina - Inclusive Queen Bee - Se dirigiam às fábricas de que saíam, de forma ordenada e organizada.

  No esgoto, Tylor e três Vespas corriam para se afastarem o mais possível da cidade, e durante a corrida, Tylor contemplava seu novo rosto : Uma novíssima máscara Vespa."

Não continua, mas não acaba por aqui.



domingo, 9 de agosto de 2015

A Colmeia - Parte III

A Abelha Rainha.

"Não se pode sentir o calor ou frio de alguém estando dentro desta prisão.
  O ferrão de uma Vespa é extensão de seu coração; mas de que adianta mostrar-lhe uma parte se realmente quero entregá-lo todo a ele ? O essencial de manter-se vivo fora da Colmeia é manter acesa a chama já fraca da humanidade nesse perverso e abandonado resto de mundo, mas confesso que a única coisa que mantém a minha chama ainda acesa é o olhar ligeiro e fulminante dele. Ah, o que meu silêncio lhe contaria se falássemos a mesma língua, Isaac.
  A tempestade se aproxima, e espero que o caos das chuvas e ventanias me guie para fora deste fardo sem escapatória."

Aurora.

"A conexão com a antiga vida fora partida; refazer pedra por pedra a grande muro da humanidade é o único recurso disponível.
  Isaac, Prof. Tylor e Aurora caminhavam ligeiramente pelos canais subterrâneos da Colmeia. Isaac não perguntava tanto quanto o professor, mas sempre que podia tentava o contato visual com a Vespa; e sempre recebia nada além de uma expressão sólida e imóvel.
  As Vespas possuíam uma motivação cultural oposta à dos habitantes da Colmeia : Nasciam e morriam jurando à seu ferrão e dedicavam-se a proteger uns aos outros, além de trazer pessoas de dentro da Colmeia para a colônia.
  Se na Colmeia as razões humanas já eram então preservadas, por que fugir ?
Aurora, pacientemente, falou sobre o grande mal. Não conseguia explicar o que era nem como se manifestava, deixando ainda mais questões que se reproduziam febrilmente pela língua do professor, mas morriam singelamente na cabeça de Isaac.
  Antes da próxima pergunta ser proferida à já impaciente moça, ela anunciou que chegaram a colônia. Versou sobre regras de comportamento e sinais que deveriam ser feitos ou evitados.Enquanto falava e subia pela tampa do bueiro, não prestava atenção na colônia à frente. Quando virou-se para ver seu lar, ergueu-se e correu em disparada pela campina, seguida lentamente pelos rapazes.
  As casas de material quebradiço possuíam um certo ar rústico , embora bem polido ; formando um contraste peculiar. A harmonia das Vespas circulando livres pelo dia ensolarado; com gritos saindo de feiras, choros de crianças mimadas, brigas e risadas histéricas enchiam a memória de Aurora...E foi apenas o que lhe sobrou; pois o incêndio geral em uma das últimas colônias de Vespa harmonizava pacificamente com o crepúsculo de pano de fundo.
  Corpos carbonizados ainda abrasados, choupanas que viraram cinzas e um espírito geral alquebrado. Um berro de Aurora irrompe como um relâmpago; em dia de sol. Seu berro abafara os pedidos de socorro vindos de trás. O luto já era forte e agora estava acompanhado de desespero ante a morte.
  O professor corria em direção a Aurora, suado e com um Zangão em seu encalço. Em uma demostração ao limite da agilidade, Aurora punha a máscara e, em fração de segundos seu ferrão estava totalmente transpassado ao corpo fino do Zangão. Mel escorreu pela lataria da machina e então esta desabou. Atordoado,Tylor possuía apenas um campo de visão , mas três focos : O primeiro Zangão que vira destruído, a ofegante Vespa...E a visão que arrebatou o olhar de ambos : Isaac de joelhos com uma lança enterrada em seu abdômen. O mais aterrador era quem segurava a ponta da lança : A própria Queen Bee.

   Uma tempestade se aproximava da Colmeia; podia ser vista da capina em que estavam; e os trovões anunciavam em coro que aquela que viria não possuía nada de natural. Sentia-se um medo geral estranho, mas Aurora sabia o que viria e o que estava buscando.

  Queen Bee não carregava qualquer expressão em seu semblante, apenas olhares mecânicos um pouco mais suaves que os dos Zangões. A abelha rainha encarava friamente Prof. Tylor e Aurora, como se esperasse algo deles; mas a paralisia pela consecutividade de eventos estava os tomando e desenvolvendo um princípio de loucura. A perfeita cidade começava a parecer desmoronar para Tylor,
   A rainha moveu o braço esquerdo para a altura do rosto; fechou os dedos com a mão ainda espalmada e torceu o antebraço para frente, seguindo de um ranger metálico. A tempestade começa a vir ainda mais rapidamente para a Colmeia, como atraída pelo sinistro movimento de Queen Bee.
  A máscara de Aurora cai e seu rosto demonstra um misto de medo e perplexidade.

A placa, as machina, a tempestade, Queen Bee. Os traços do destino começam a se esticar."

Continua...

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

A Colmeia - Parte II

A vida secreta das Vespas.

" 5 de Maio
A Colmeia é uma cidadela encouraçada, localizada no coração de uma ilha que é, graças aos céus; perdida. O mundo fora tomado há anos atrás por uma horda de não-se-sabe-o-quê que se recusa a adentrar os mares. Tudo flui perfeitamente aqui, apesar da crise lá fora. Não sabemos o que tomou de assalto nosso velho mundo, mas vemos na atividade extrativista desse curioso combustível "Mel" uma chance de podermos, enfim, reestruturar nosso antigo mundo.

22 de Maio
Uma governante bondosa, porém tão distante; esses bizarros robôs e as curiosas Vespas : Algum desses mistérios eu sinto que devo me aprofundar. Talvez comece por quem me é semelhante.

8 de setembro
Medo, insegurança e um enorme vazio obscuro à frente. Aqui vou eu, com a ajuda do estranho rapaz Isaac e bastante desconfiado sobre o que virá."

Professor R.H. Tylor.

"Tylor e Isaac caminhavam lentamente museu adentro. Uma marcante penumbra e poucas janelas tornavam o lugar com ar claustrofóbico; com uma pitada leve de horror , pelas cabeças de feras estranhas e placas com inscrições complexas. Ambos pararam de frente a uma especial placa. Isaac parou pelo seu entalhe curioso em ouro, e o professor parou porque esta era a razão central de estarem ali.
  O professor explicou ser pesquisador de culturas; mas só podia se interessar por uma das únicas culturas exóticas disponíveis a estudo de campo; a das Vespas. Nunca teve coragem ou oportunidade para se aventurar fora da Colmeia; até o dia que fora chamado para ir na drenagem do poço de Mel. Lá, uma das escavadeiras acertou algo metálico , e as operárias, por alguma razão,decidiram não destruir o achado como qualquer empecilho, mas sabiam exatamente a quem recorrer. Quando chegou à escavação, o professor se deparou com uma placa de dois metros de altura por três de largura e cerca de 25 centímetros de espessura. A placa era simples, sem códigos; mas uma cena peculiar entalhada : Como uma espécie de ídolo, uma grande figura humanoide estava ao centro, de aspecto indescritível - A única parte reconhecível eram um par de pontas que pareciam orelhas ou chifres - Na esquerda do ídolo uma figura com silhueta de mulher trajando um vestido, sendo essa figura com altura de um terço do ídolo; e à direita pequenos seres, proporcionalmente finos e enfileirados.
  Um estranho calafrio transpassou o corpo de Isaac que,um tanto perplexo, se virou para perguntar algo ao professor Tylor, mas viu algo que o deixou completamente paralisado. Por cima do ombro do professor podia-se ver uma Vespa alguns passos atrás; com o ferrão saindo pelo pulso com a mesma paixão que um cavaleiro segura sua espada.
  A boca de Isaac ia começar a balbuciar algo, quando o professor fechou os olhos e suando, concordou com a cabeça. A Vespa começa a se aproximar, levantando o braço com o ferrão na altura dos olhos oculados da máscara metálica.
  Ferrões de Vespa são barras afiadas de prata que, uma Vespa adulta carrega no braço direito, por dentro da carne; e como puderam ver no museu, Isaac e professor Tylor; são retráteis à vontade do usuário. Um desses ferrões vinha na direção da dupla, e brilhava contra a escassa luz do museu.
  A dupla, agora virada para o invasor, estava imóvel e suando frio. A morte vinha a passos lentos, mas parece que algo a deteve.
  A centímetros de distância, rosto-a-máscara estavam Isaac e a Vespa, e esta encarava de muito perto o jovem, como fosse um dos artigos do museu. A Vespa então recua um passo e olha para a placa. Retrai o ferrão, cai de joelhos e seu peito começa a insuflar e esvaziar rapidamente, e um barulho desesperado e abafado vem da máscara, que a Vespa retira com certo requinte, como fosse uma peça de roupa fina. Uma moça ainda mais jovem que Isaac, de cabelos brancos curtos e um pontudo nariz por onde escorriam as lágrimas.
  Estuporado, o professor Tylor ajoelha-se bem devagar e pergunta algo em tom baixo qualquer coisa à Vespa. Uma resposta afirmativa ecoa em doce voz pelo museu e faz os rapazes arregalarem os olhos. Em gestos graciosos e ágeis; esta aponta com a mão para a placa a conta-lhes uma história um tanto curiosa :
 Aonde agora existe a Colmeia, fora apenas uma ilha abandonada. As pessoas se interessavam pela descoberta, paixões, erros, cidades de concreto e ferro e milhas de aventuras pelo mundo inteiro. Em uma noite de forte brilho das estrelas, eles apareceram. Ninguém sabia o que era ou por que estavam lá, e ninguém sobreviveu para relatar qualquer mísero detalhe. O que as lendas das Vespas contam, é que estavam lá para libertar o que adormeceu. Snasitir'Bh era o nome dado pelas Vespas.
  A Vespa apontou para a placa, na gravura do ídolo. Tylor começou a estremecer e Isaac ficou pálido.
  Foram sessões longas de perguntas sobre o povo dela, as lendas, significados...E Isaac apenas perguntou o nome da jovem, se ela tinha um.
  Aurora, era seu nome. A pronúncia dos pequenos lábios pálidos despertou algum incômodo estranho em Isaac. Por fim, ela contou que as Vespas não eram selvagens, mas pessoas fugidas da colmeia. Quando questionada por que alguém fugiria de um lugar tão receptivo e bom, Aurora mostrou um lado obscuro de sua expressão e a ponto de dizer-lhes, a placa então começou a rachar-se sozinha até quebrar, e perdeu seu brilho dourado. Aurora empalideceu rapidamente disse que não havia mais tempo, deviam acompanhá-la. O professor correu a um gabinete e voltou, aos tropeços, com uma pequena bolsa e disse que estava pronto para ir. Isaac fechou a jaqueta vermelha até a gola e acenou com a cabeça. E saíram do museu, caminhando rápido; sem olhar para os lados, mas atraindo a fria atenção dos Zangões.
  Havia um beco estreito , no qual Aurora arrancou do chão uma tampa secreta e disse que o canal dava para fora da colmeia. O professor, sentindo um misto de euforia e medo perguntou à Vespa aonde iriam.
  Ela disse que iriam conhecer a vida secreta das Vespas.

  Queen Bee olhava de seu gabinete, no prédio mais alto da cidade, para baixo; fria e concentradamente. Havia em sua mesa um computador que se desligou ao estralar de dedos da governante. Quando preparou-se para levantar, sentiu algo estranho. O quadro na parede atrás dela possuía uma placa idêntica à placa do museu do professor Tylor, porém menor; que também secou e rachou-se no meio, perdendo seu brilho. Por alguns instantes, Queen Bee ficou parada sem reação; e após um surto de lucidez; mesmo sem expressão, levantou-se e pressionou um botão na lateral da mesa. Um painel eletrônico surgiu em sua frente, com algumas informações em língua estranha, e um gráfico semelhante a um termômetro chamava a atenção. Havia uma meta em vermelho um pouco acima da metade do gráfico, e a barra de cor laranja ultrapassava a meta. Com um gesto veloz do braço, Queen Bee desligou toda a força na sala, pegou uma espécie de bastão com um cristal na ponta e saiu pela porta.

Continua...
 

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

A Colmeia - Parte I

Mel e metal.

"Todos amam e saúdam a mamãe.
 Embora só as machina sejam fruto direto dela; e esta nunca tenha pedido ou nos obrigado a se curvar diante da magnificência da Queen Bee, o fazemos com total voluntariedade e prazer. Ela não parece gostar, mas o fazemos mesmo assim.
Acho que nossa grandiosa líder esconde algo embaixo do vestido, que só pode ser visto por quem se ajoelha."

Isaac.

"As ruas da colmeia levam a vários lugares. Lugares de trabalho; como escritórios, construtoras, lojas ou alguma fábrica da LUM. As machina são todas feitas na LUM e suas imensas montadoras.
Curiosos seres, essas machina. São androides arranjados em três padrões : Operários ( Trabalham na obtenção do Mel ), Zangões ( Mantêm a ordem e policiam ) e Verdugos ( Guarda pessoal da Rainha; só podem haver três em atividade ).
  Isaac vaga preguiçosamente pelas ruas semi-vazias da colmeia, em direção ao grande poço de Mel. Não mel comum, mas o nome de substância viscosa e alaranjada que é utilizada como fonte de energia para a colmeia; embora nunca é vista uma gota de Mel fora do poço ou dos veículos de transporte.
 O barulho das operárias forma uma estranha sinfonia aparentemente caótica, mas complementar ao progresso do trabalho.
  E o trabalho não para. Nunca.
Há diversas apresentações musicais, teatrais, cinemas ao ar livre e em salas, banquetes, jogos esportivos e festas acontecendo neste exato momento, tudo sempre gratuito e convidativo. As pessoas de carne e osso trabalham em afazeres voltados às próprias pessoas; como aprendizados. Cozinheiros, alfaiates, músicos, atores, atletas, escritores, professores...Seria decadente supor que as pessoas parasitam o trabalho árduo e incessante das machina, mas , curiosamente; quando a vida útil de um desses androides está a acabar, eles são enviados para qualquer atividade das pessoas.
Assistem imóveis, aplaudem e se retiram; para serem desmontados. Talvez uma última diversão antes...de morrer.
  Isaac fazia o oposto. Era um pontinho carnal, observando o movimento coordenado das operárias; enquanto era observado pelos Zangões. Essa força vigilante dos zangões, chegava a ser misteriosa e incômoda, pois ficava em pontos estratégicos; sempre observando o humano mais próximo, fixamente. Quando o humano saía do campo de visão do Zangão,este voltava a cabeça para frente em um movimento elástico, totalmente mecânico. Seus capacetes eram ornados com quatro vãos emitindo luz amarela, como fossem os olhos.
Estáticos, atentos...E algo mais intrínseco à sua natureza caracterizavam os Zangões.
Eram os únicos que realmente perturbavam Isaac em suas observações diárias; como se o rapaz tivesse ideia do que eles faziam, embora nunca os tivesse visto.
Machina e humanidade; se cruzando diariamente num frenesi perfeito e bem ajustado pelas mãos da Queen Bee.
Em uma manhã mais fria e nublada que o normal; Issac esbarra em um senhor, que ao lhe pedir desculpas, lhe oferece um convite : Ir à exposição de mais novas descobertas arqueológicas por ele promovidas. Seu nome era Raymond H. Tylor.
Isaac olhou para a quadra central, do poço e olhou de volta para o sorriso inocente e simpático do professor Raymond.
Seguiram ambos ao museu, enquanto o prof. Raymond explica seu trabalho fervorosamente ao jovem Isaac.

  As Vespas eram uma sociedade minúscula, que se instalava às bordas dos portões da Colmeia. Não possuíam contato com machina, e levavam uma vida pouco saudável, além de ser voltada para a matança de todos que viviam dentro da colmeia. Homens, mulheres e crianças vespas usavam máscaras com um par de lentes de aumento que se ajustavam apenas com o pensamento. Eram facilmente abatidos pelos Zangões, que faziam turnos de varredura em volta dos portões; obrigando toda e qualquer vespa a se esconder. Lendas são contadas dentro da colmeia em torno deste misterioso povo, que viram até películas, música, histórias...

  Quando Isaac adentra o museu, sente um leve calafrio e olha para trás. Desconfiado, se volta para a frente.
  As esticadas lentes da máscara metálica, dourada e maltratada de uma vespa contraem devagar quando em seu reflexo mostram Issac e prof. Raymond entrando e fechando a porta.
A vespa se vira e vai embora."

Continua...

sexta-feira, 31 de julho de 2015

O Cômodo Obscuro.

"O cômodo obscuro se chama mente.
 É certamente o lugar mais estranho que você já habitou.

É um cômodo diferente dos outros;
Pois não serve pra dormir, cozinhar ou receber visita;
É exclusivamente feito para te assombrar com os demônios
Do mundo.

Os dragões que desprendem da mitologia
Vão encontrar um refúgio seguro,
Com comida e água fresca
Nesse cômodo obscuro;
Vão ser, somente aí, livres para praticar existência
E
Fazer você sentir que existe, também.

Se deseja fazer uma marca ou gravar seu nome
Na parede do mundo,
Saiba que o combustível de fogo é guardado
Nesse cômodo obscuro, junto com tudo
Que te faz sentir sempre mais e melhor,
É onde pendura os quadros pintados com seus melhores
Momentos.

Se um dia chegar a se apaixonar,
Saiba que seu coração ganha a fama por seu tua consciência,
Mas que só o obscurecido cômodo
Toca a música que pulsa cada centímetro de você
Em disparada transcendente ao outro ser.

Seu cômodo tem janelas curiosas
Que não recebem a luz do dia,
Mas transformam em luz
Qualquer dia que florescer ou explodir em ti,
Pois tudo acaba sempre em luz.
Luz obscura.

Se por um acaso
Deseja partir em jornada mundo afora,
Não deixa que tuas sensações te enganem;
Abra de bom grado a pesada porta que separa-te
Do cômodo,
Espalha o pó
E aventure-se a conhecer
Você mesmo,
Em seu cômodo obscuro."


domingo, 26 de julho de 2015

Nightingale.

"I
 A lua púrpura é o coração da Espanha nas noites de festa.
 As danças corpo a corpo formam, todas juntas, um ritmo de harmônica inconstância como sangue quente correndo pelas veias de toda Andaluzia.
 Fortes são as pulsações desse sangue flamenco que se passam de dança em dança; lábio em lábio; e sem ceder a qualquer encanto mantinham-se imaculados os lábios da pequena Rouxinol; de traços corporais suaves e praticamente feitos para flamenco, merengue ou salsa. Essa pequena rouxinol está sempre em todas as pulsações espanholas e acelera e aquece ainda mais o sangue das ruas e dos homens que são honrados com uma dança.
 Só aparece pelas frestas noite, a Rouxinol; e com um ritmo acelerado, tanto de coração quanto de ginga. Porta sempre uma curiosa máscara que combina estranhamente com seu feitio encantador e livre de um preconceito tão efêmero quanto a aparência.
 Curioso apelido, já que se vale dança e ainda assim é chamada por um pássaro famoso pela voz. Dize-se que quem assim a chamou pela primeira vez fora o único ou única que tenha ouvido a voz ou despido sua máscara. Tamanha honra é dar-se sem máscara à pessoa que a merece, pois não cabem mais julgamentos depois que a própria doçura em si seja a única imagem que se tem desse alguém.

II
 Os sonhos saem pelas varandas e ricocheteiam nas ligeiras palhetadas da guitarras que animam o festival; espalham-se e apaixonam-se pelos suspiros que se escondem nas gargantas e são disfarçados pela dança.
 Porém um disfarce chama sempre mais atenção que os outros : Uma máscara cromada e adornada por um perfeito entalhe de rosa atravessado pela expressão fria do objeto toma a cena e contrasta com o curto vestido preto e vermelho que se move e balança hipnoticamente, traçada perfeitamente a silhueta do quadril da Rouxinol e embalada em forma de pintura pela acelerada guitarra.
 Entrava em meio a todos dançando sozinha e atirada em direção ao nada, mas sempre sustentada pelos olhares de desprezo ou paixão severa, e seguia a assim a noite, de braço em braço, dança em dança; mas sem desferir um beijo, palavra ou expressão sequer. O rosto e a boca tapados pela máscara e a garganta tapada pelo mistério quase erótico.
 Como quem apanha um beijo no ar, um jovem apanhou esse mistério e com olhar semicerrado dançou em direção ao Rouxinol; como se entendesse que podia ele desvendar aquela história se erguendo a passos...calientes.

III
 A Rouxinol sem voz some em meio às pulsações da cidade e o jovem fracassa em achá-la.
 Lamenta pela manhã não lhe ter perguntado o nome ou qualquer coisa; pois ficara bestificado com os movimentos ligeiros energizados por ritmo rápido.
 Esse ritmo rápido a atrai como formigas ao doce e como as sombras ganham vida na própria luz; esta misteriosa luz obscura ganha vida nas sombras da noite, e dos becos e festas por toda a Andaluzia passa a mascarada em busca de dança.
Festa por festa, dança por dança, nota por nota.
Eternamente.
Febre passageira, espírito do simplicidade e beleza que lutam contra a gaiola para que se aconchegue no seio da felicidade qualquer povo que não mereça sofrimento.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Poema do pequeno Baú, ou A Caixa de Pandora.

"Eu tenho um palpite
 Eu tenho um palpite
 Eu tenho um palpite
 Eu tenho um palpite.

 Não.

 É quase tudo que me sai à cabeça,
 Quando o bauzinho faz os sons graves
 Virarem , no ar, signos misteriosos,
 Ou ostenta , de próprio significado
 Um ainda mais misterioso signo :
 Um sorriso.

 O bauzinho se deixa levar pelo embalo saboroso
 Da noite de festa,
 Mas sou , de fundo orgulho,
 O conhecedor primo dos seus segredos.

 Segredos esses que atraíram um certo
 Curioso
 A fuçar-te as dobradiças
 Atrás das respostas às próprias inquietações da vida
 Dentro de um bauzinho
 Sem tranca,
 Mas com singular fecho.

 Não tenho sua chave,
 Não o controlo,
 Mas torno um prazer da vida
 Fazer o bauzinho gargalhar,
 Para que seu interior eu veja.
 Não é tão raso quanto o mesmo se imagina,
 Guarda em si profundas
 Forças,
 Fraquezas,
 E um mundo tão em si
 Que não vejo o Baú como uma coisa,
 Mas
 Sim
 Algo em si,
 Que sempre guarda o mais essencial caráter humano,
 E que não pode ser apenas a caixa de Pandora,
 Mas a própria Pandora :
 Única,
 Primeira,
 Magnífica.

sábado, 4 de julho de 2015

A Razão da Justiça.

"Era uma nação muito engraçada,
 Só tinha um Rei, que sábio de berço
 Devia sempre ser, não por família,
 Mas por escolha de um Destino fanfarrão.

 A cidade crescia mais e mais
 Em torno dos três Centuriões de Ouro,
 Que informavam a decisão do universo
 Para o pequeno povo.

 Não tinham rostos, os monólitos dourados;
 Somente um espaço para as palavras.
 Uma de cada vez e as três juntas.
 Do rosto de cada Centurião, o veredicto
 Da boca de cada Rei, a interpretação.

 Rei Edvardo, desde pequeno criado para ser Rei,
 Livros de legislação e filosofia ainda muito jovem
 Estudos ao invés de anedotas,
 Tirou-se o açúcar da infância
 E se acrescentou a gosto o ferro das leis.
 A receita correta para servir um tirano à moda.

 Os centuriões se levantam da pose estática
 E põe-se de pé a anunciar as palavras já escolhidas,
 Por ninguém sabe quem, mas precisamente
 Como o carrasco ao réu.
 Nos visores dos capacetes das estátuas vivas aparece :
 JORQUÈ - VIRGO - MORTEM

 A Ágora estava em pânico.
 As três palavras pareciam centenas,
 Pois pareciam detalhar cada condição
 Do que seria uma sentença final.

 "O Cavaleiro escuro, Jorqué.
 Aparece sob a constelação de Virgem,
 Semeia horror como quer,
 As mulheres morrem de vertigem,
 As crianças morrem de pé."

 Assim era um poema popular daquele povo,
 Que não apreciava cantigas de amor,
 Só lamentos de almas perdidas
 E choros de almas banhadas em dor.

 O Rei chegou ao seu ápice,
 Filosofou e maturou a resposta celestial:
 Exigiu as virgens da cidade
 Para completar o ritual,
 Ritual de libertação de seu povo,
 Com a bênção do Universo,
 Que, como dizia o sábio Rei;
 Clama seu sacrifício carnal.

 O povo entregou ,sem demora, as humildes jovens,
 Nunca prontas ao destino injusto;
 E trancafiadas foram
 Nos aposentos do Rei.

 Na noite do sacrifício, uma confissão dura :
 Rei Edvardo e uma das jovens, Temys, a cega; estão apaixonados,
 Deitaram-se pela manhã
 E arrependeram-se quando viram o fatal presságio,
 Do reflexo das chamas da fogueira nas armaduras dos Centuriões.
 O inferno viria da justiça imparcial, pensara Edvardo.
 E estava certo, o monarca.

 O dia seguinte se deu com o sofrido povo castigando
 Não o promíscuo e irresponsável Rei,
 Mas atirando pedras na jovem que ia ser sacrificada,
 Troçando-a como 'prostituta cega'.
 O povo tomava aquele ato de ódio
 Contra uma deficiente e adolescente menina,
 Por que dizem que prender o ódio faz mal ao coração,
 Mas descarregá-lo no Rei
 Faz mal aos bolsos.

Noites belas costumam ser também, artistas;
E aquela noite decidiu desenhar
Traços de Cavaleiro Negro.
 Jorquè entrou sorrateiro na cidade e seu diabólico corsel
 Cavalgava cidatela adentro,
 Com seu jóquei despedaçando pelas ruas
 Tudo que era vivo e de carne,
 Pintando os muros e estradas
 De vermelho.

 Corpos de homens, mulheres e crianças
 Se misturavam aos pedaços no chão;
 Os que sobreviviam se escondiam em abrigos subterrâneos
 E clamavam a qualquer coisa que pudesse ouvir
 Que a noite acabasse de vez.

 O cavaleiro e seu cavalo iam a trote procurando
 Pelo resto de cidadãos que ainda vivessem,
 Pois a sede de sangue desse demônio encarnado
 Ainda estava começando.
 E fora atiçada quando vira na Ágora,
 Uma figura encapuzada se postava de pé,
 Quase como desafiando Jorquè.

 O Diabo de malha preta botou o cavalo a galope rápido,
 Reto em direção à vítima.
 Ia implacável e quase desesperado.

 A figura de capuz sacou uma singular espada,
 De forma ligeira passou a lâmina no torso do cavaleiro,
 No exato momento em que este estava com sua espada no alto,
 Passando a galope.

 O povo, incrédulo chegava perto do corpo partido do cavaleiro,
 E depois olhara para seu benfeitor, que permanecia parada
 No mesmo lugar, com a espada abaixada,

 A incredulidade tomava conta daquela gente,
 Não pela morte do Diabo,
 Mas por terem sidos salvos
 Por uma prostituta cega,"




sexta-feira, 3 de abril de 2015

Sangere Rom.

"Na mais alta torre de sua curiosidade, um estudioso de sociedades exóticas examina o acervo universitário de obras etnográficas.
Seu olhos procuram, incessantes, por algo peculiar entre as páginas dos livros. Tudo passa tão rápido diante dos óculos; letras, páginas, livros...Sociedades Viajantes : Relatos Incompletos.
Esse livro o instigou como o algo peculiar que o estudioso procurava. Sentiu-se como uma criança encontra a mãe em meio a multidão.
Debruçou-se sobre o livro e lá inciou sua caçada. Os nomes dados às sociedades eram quase científicos e pouco se falava sobre as opiniões e fatos puros sobre o que o povo contava, se é que contava algo. Os relatos eram distanciados e frios.
O estudioso enfim encontrou sua alavanca de revolução : Construir um relato com a voz dos exóticos.
Então decidiu escolher quais.
Rovdyr Rom, os sanguinários; Trevirke Rom, os toscos; Hengivne Rom, os benevolentes...Todos os relatórios eram monolíticos e tediosos; e qualquer povo poderia ser revisto. Entretanto um povo particular chamou a atenção : Os Sangere Rom. Na descrição estava "Os Artistas". O relato era curto e perturbador : "Quem os encontra, encontra também sua perdição e não mais retorna para casa."
O estudioso respirou fundo, arrumou sua bolsa de viagens e sua roupa. Hesitou com a mão na vela de seu dormitório e após um longo segundo a apagou para dormir seu possível último sono em uma cama.
Viajou em direção ao norte. Atravessou bosques, rios e por fim alguns belíssimos fiordes. As luzes do sol no norte parecem em fim ganhar um sentido harmônico longe da melancólica e cinzenta cidade que vivia.
Encontrou alguns outros viajantes; fora assaltado, embora tenha conseguido escapar em uma cômica anedota e banhou-se em chuva do norte.
Por fim; lá estavam eles. Parados ao redor da fogueira , no coração da floresta, os Sangere Rom. O coração do viajante experimentou a dicotômica sensação de bombear sangue frio de medo e quente de alegria.
A madrugada invadiu a noite e eles continuavam a cantarolar de forma magnífica canções em uma língua totalmente particular a eles e nova ao estudioso. Este cria coragem e desce a rocha que estava para tentar se apresentar a a eles.
"Quem os encontra, encontra também sua perdição e não mais retorna para casa"
A cantoria cessou repentina e todos fitaram o estudioso, que andou a eles de cabeça baixa e devagar.
Nada fizeram, apenas o observaram.
O estudioso parou e observou a reação do povo andante.
Todos o observavam. Um frio lhe correu a espinha e ele sentiu louca vontade de correr de volta à pedra.
Um deles se movimenta. Pega o alaúde e dirige-se ao estudioso em perfeito sotaque :
-Sente-se.
O estudioso obedece de pronto e senta na grama. Apreensivo
Os acordes começam a ganhar força nos alaúdes em sua volta; todos em perfeita sincronia. Uma mulher sai de dentro de uma das tendas espalhadas; fecha os olhos e começa a cantar com explêndia voz :

"Somos os Sangere Rom, filhos da floresta.
Cantamos com os tordos, tentilhões
E a luz do sol.

Nosso caminhar é lento
Nosso canto é sereno
Nosso coração é ameno.

Temos a floresta de coberta
A grama de cama
E a lua de vela.

Nossa fé é a música
Nossa música é o amor
Nosso amor é o ouro.

O caminho é muito longo 
E não vem de qualquer parte
A vida é muita curta 
E não vai lugar algum

Apagamos as velas de noite
Pois o fogo das florestas
Está em seu próprio coração
E arde sem queimar."

Depois do canto de apresentação, os Sangere ofereceram farta ceia em recepção ao perplexo estudioso, que ouvira cada palavra (Em sua própria língua, o que reforçou o espanto) da bela e simples canção.
Seus temores eram reais.
O estudioso não voltou mais para casa; juntou-se aos Sangere Rom e o último relato que fez na vida foi a felicidade cantada que se instalou em seu coração pelo resto de seus dias."

"O que impressiona o homem no espetáculo dos outros homens são os pontos em que se assemelham" - Claude Lévi-Strauss.



domingo, 15 de março de 2015

O Processo da Morte.

"A morte parece menos horrível quando se está cansado." Simone de Beauvoir

"É extremamente doloroso e desencorajador descer todos os dias a este canto do inferno. Este canto frio e escuro salpicado das luzes da rua é uma sala de interrogatório que as trevas do meu espírito me carregam para uma audiência de tempo inconstante. Quando elas se sentem entediadas ou incomodadas, sussurram pânico e tratam de incendiar minha curta paz como se incendeia uma carta de ex-amante. Devagar e deleitando cada milímetro que o fogo avança e corrói a própria existência do papel.
 Esse processo de sentar, maturar e escrever - Sejam crônicas, romances, poemas, tratados ou lamentos - Deveria ser um talento nato e inspirador, que carregaria as palavras pelos textos como o vento carrega os aromas do campo. Porém este fatídico processo é de morte. Um a um, depositam-se partes do próprio eu que deviam ser aproveitadas para construir-se algo que mais pessoas pudessem desfrutar. Livros, artigos, manifestos; qualquer obra, por mínima que fosse afim de iluminar que seja um passo de uma pessoa. Um passo que esta pessoa dá em direção ao sonho.
 Os sonhos se desmancham e são julgados quando chega-se ao fim da vida. Porém é possível descobrir, nesse meio tempo entre nascer e morrer; a inconsumível e insaciável maçã do Éden : A destrutiva arte da metafísica.
 Gastar algumas interruptas horas da sua vida com perguntas de pouca utilidade prática podem, sinceramente fazer-te enxergar a contagem regressiva à tua morte. Se aproximar do conhecimento metafísico é como ir em direção a uma pantera; uma vez que a fera te enxerga, não há fuga. Embora todos saibamos que temos um fim, nos negamos a aceitá-lo. A vil ganância por progresso e acúmulo de bens parece assemelhar-se a essas sombras que sussurram desespero em meus ouvidos. Porém no ouvidos dos gananciosos mentem a eles algo sobre riqueza e imortalidade, fazendo o sangue chegar perto de ebulir de tanto furor.
  Os relógios do meu tempo não fazem tic-tac, porém a mudança abrupta de algarismo libera alguns instantes de vozes das almas que se perderam no vão do tempo.O pouquíssimo ou nenhum conhecimento que possuo de metafísica é um canal frágil. porém nítido para canalizar estas vozes perturbadoras no interior da minha mente. Os gritos fazem ecos nas paredes do meu crânio, depois descem à língua e sinto gosto de fuligem. Fuligem ou cinzas de corpos queimados.
 Quando finalmente volto a mim, o desespero se acentua, pois ainda não posso me sentir aliviado por ter morrido, de fato."

S.


sexta-feira, 13 de março de 2015

Noite de Escuro Eterno.

"O mundo está lá fora,
  Pronto para ser consumido.

  Deixo o vil prazer às carnes mais ansiosas;
  Que fazem luzes e barulhos sem pudor,
  Como se a própria natureza da escuridão
  Fosse cega e surda.

  Os menores deleites são os mais imprescindíveis,
  Na noite de escuro eterno;
  Em que as chamas da vela iluminam o espírito
  Através do próprio corpo, como no papel;
  E destacam na escuridão virgem da parede
  O espírito de todas as coisas,
  Que é sombrio tanto de dia como de noite.

  Atiro esse anel de ouro junto à tempestade
  Que enfurece noite adentro.
  Molha minha janela
  Com chuva
  E minha cama
  Com sangue.

  O fogo noturno apaga.
  A lua mudou de posição como faz o sol;
  Então por ela marco as horas regressivas
  Que a noite noite me faz aguardar
  Ante a terrível sentença de um dia luminoso.

  As brasas remanescentes da lareira
  Têm um brilho tímido,
  Ao que leva a crer que,
  Quanto mais forte um fogo na escuridão
  Menos luz ele parece ser;
  Apenas uma janela ao inferno."

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Animatrônicos.

"Meu nome não importa, muito menos quem sou. Mas sou homem, tô' na meia idade...E apavorado.
 Estou dentro do quarto do pânico da minha casa. O que quer que esteja lá fora está tentando entrar aqui e me pegar. Estava atrás do meu filho também, mas ele encontrou abrigo nos exaustores da casa.
Um berro estridente e por uma das câmeras de segurança vejo sangue espirrar e depois escorrer pelo exaustor de um dos corredores. Pegaram meu filho, e fui muito covarde para tê-lo trazido aqui. Mas estou seguro; isso que importa. Posso começar vida nova, ter filhos novos, casa nova...Esquecer isso...
Por uma das câmeras de segurança vejo o pirata Sheldon esfregar sua cara de plástico carbonizado e ferro oxidado na porta do quarto do pânico.Ele para automaticamente, se vira e dá a volta no corredor.

As coisas fugiram ao controle...Eram simples bonecos animatrônicos de uma lanchonete antiga. O Max os amou à primeira vista...Ele dizia que...Sentia...Sentia uma ligação com os bichos. Essa ligação se rompeu quando essas coisas o destriparam.
Sheldon, o pirata; Tim, o palhaço e Jude...A coisa com mínimas feições femininas.

Os três diabos estão lá fora, procurando uma maneira de entrar.Eles mal me viram, mas sabem que estou aqui. Me sentem, mas não pelo medo; me sentem pelo instinto  de assassino.
Jude...Está olhando diretamente para a câmera da cozinha. Olhando para o vazio de uma câmera filmadora. As máquinas parecem conversar uma espécie de linguagem não verbal entre si; mas além disso, o sentido demoníaco que faz os animatrônicos andarem, faz Jude me ver sem ver. Faz os bonecos caminharem sem vida. Faz minha cabeça se lembrar que Deus me abandonou à minha sorte, contra o que quer que esteja fazendo esse palhaço insano ficar observando a cabeça mutilada de meu filho...
Sheldon achou a caixa de força da casa.
Sheldon mordeu os fios.
A luz da casa caiu, porém o quarto continuou aceso, e um aviso de noventa e nove por cento de bateria restante surgiu no ecrã do sistema de câmeras.
Noventa e nove por  cento de energia restante.
Quando chegar a zero, irei conhecer o inferno; escuro e frio.

Os barulhos de eletricidade são fortes através dos circuitos do gerador interno. Desligo a luz interna para administrar a energia restante afim de adiar o que está por vir.

Vinte e quatro por cento.
Tim e Jude vagam pela casa sem objetivo.Eles não se esgotam.Os interruptores dos bonecos devem ter o modo "matar".

Vinte por cento.
Não vejo Sheldon.
A câmera do Hall de visitas foi desligada.

Doze por cento.
Há um machado de incêndio.
Meu suor escorre pela testa e cria nodas na minha blusa.
É como uma visão de onde o sangue vai escorrer.

Cinco por cento.
Havia me preparado para lutar, quando a energia findasse.
Derrubei o machado quando olhei para a câmera do corredor.
Havia uma marca caótica, porém inteligível na parede, feita com sangue.
Um emblema que registrava algo nessa casa. Algo tomava conta desses bonecos.
E também do corpo do meu filho, que rastejava moribundo; sem sangue nem alma, apenas com o olhar vazio e fixo para a câmera de segurança.

Zero por cento.

..."


Todos os jornais passavam a mesma bizarra e instigante manchete : Pai é acusado de assassinar brutalmente o filho e culpa os bonecos animatrônicos.
O pai já fora diagnosticado por surtos psicóticos, e será levado a tribunal ainda esta semana.

A casa cercada pela polícia e a cena do crime manchada de sangue. O sistema elétrico da casa estava em ruínas, com sinais de golpes de machado pelas canaletas, fios e quadro elétrico.
Na prateleira do quarto do falecido garoto estavam seus bonecos animatrônicos.
Tim, o palhaço.
Jude, a coisa.
Na poltrona da sala estava Sheldon, o pirata.
O perito veio buscá-lo para análise, quando tropeçou em um palhaço.
Jude observava tudo do quarto do pânico."