sexta-feira, 31 de julho de 2015

O Cômodo Obscuro.

"O cômodo obscuro se chama mente.
 É certamente o lugar mais estranho que você já habitou.

É um cômodo diferente dos outros;
Pois não serve pra dormir, cozinhar ou receber visita;
É exclusivamente feito para te assombrar com os demônios
Do mundo.

Os dragões que desprendem da mitologia
Vão encontrar um refúgio seguro,
Com comida e água fresca
Nesse cômodo obscuro;
Vão ser, somente aí, livres para praticar existência
E
Fazer você sentir que existe, também.

Se deseja fazer uma marca ou gravar seu nome
Na parede do mundo,
Saiba que o combustível de fogo é guardado
Nesse cômodo obscuro, junto com tudo
Que te faz sentir sempre mais e melhor,
É onde pendura os quadros pintados com seus melhores
Momentos.

Se um dia chegar a se apaixonar,
Saiba que seu coração ganha a fama por seu tua consciência,
Mas que só o obscurecido cômodo
Toca a música que pulsa cada centímetro de você
Em disparada transcendente ao outro ser.

Seu cômodo tem janelas curiosas
Que não recebem a luz do dia,
Mas transformam em luz
Qualquer dia que florescer ou explodir em ti,
Pois tudo acaba sempre em luz.
Luz obscura.

Se por um acaso
Deseja partir em jornada mundo afora,
Não deixa que tuas sensações te enganem;
Abra de bom grado a pesada porta que separa-te
Do cômodo,
Espalha o pó
E aventure-se a conhecer
Você mesmo,
Em seu cômodo obscuro."


domingo, 26 de julho de 2015

Nightingale.

"I
 A lua púrpura é o coração da Espanha nas noites de festa.
 As danças corpo a corpo formam, todas juntas, um ritmo de harmônica inconstância como sangue quente correndo pelas veias de toda Andaluzia.
 Fortes são as pulsações desse sangue flamenco que se passam de dança em dança; lábio em lábio; e sem ceder a qualquer encanto mantinham-se imaculados os lábios da pequena Rouxinol; de traços corporais suaves e praticamente feitos para flamenco, merengue ou salsa. Essa pequena rouxinol está sempre em todas as pulsações espanholas e acelera e aquece ainda mais o sangue das ruas e dos homens que são honrados com uma dança.
 Só aparece pelas frestas noite, a Rouxinol; e com um ritmo acelerado, tanto de coração quanto de ginga. Porta sempre uma curiosa máscara que combina estranhamente com seu feitio encantador e livre de um preconceito tão efêmero quanto a aparência.
 Curioso apelido, já que se vale dança e ainda assim é chamada por um pássaro famoso pela voz. Dize-se que quem assim a chamou pela primeira vez fora o único ou única que tenha ouvido a voz ou despido sua máscara. Tamanha honra é dar-se sem máscara à pessoa que a merece, pois não cabem mais julgamentos depois que a própria doçura em si seja a única imagem que se tem desse alguém.

II
 Os sonhos saem pelas varandas e ricocheteiam nas ligeiras palhetadas da guitarras que animam o festival; espalham-se e apaixonam-se pelos suspiros que se escondem nas gargantas e são disfarçados pela dança.
 Porém um disfarce chama sempre mais atenção que os outros : Uma máscara cromada e adornada por um perfeito entalhe de rosa atravessado pela expressão fria do objeto toma a cena e contrasta com o curto vestido preto e vermelho que se move e balança hipnoticamente, traçada perfeitamente a silhueta do quadril da Rouxinol e embalada em forma de pintura pela acelerada guitarra.
 Entrava em meio a todos dançando sozinha e atirada em direção ao nada, mas sempre sustentada pelos olhares de desprezo ou paixão severa, e seguia a assim a noite, de braço em braço, dança em dança; mas sem desferir um beijo, palavra ou expressão sequer. O rosto e a boca tapados pela máscara e a garganta tapada pelo mistério quase erótico.
 Como quem apanha um beijo no ar, um jovem apanhou esse mistério e com olhar semicerrado dançou em direção ao Rouxinol; como se entendesse que podia ele desvendar aquela história se erguendo a passos...calientes.

III
 A Rouxinol sem voz some em meio às pulsações da cidade e o jovem fracassa em achá-la.
 Lamenta pela manhã não lhe ter perguntado o nome ou qualquer coisa; pois ficara bestificado com os movimentos ligeiros energizados por ritmo rápido.
 Esse ritmo rápido a atrai como formigas ao doce e como as sombras ganham vida na própria luz; esta misteriosa luz obscura ganha vida nas sombras da noite, e dos becos e festas por toda a Andaluzia passa a mascarada em busca de dança.
Festa por festa, dança por dança, nota por nota.
Eternamente.
Febre passageira, espírito do simplicidade e beleza que lutam contra a gaiola para que se aconchegue no seio da felicidade qualquer povo que não mereça sofrimento.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Poema do pequeno Baú, ou A Caixa de Pandora.

"Eu tenho um palpite
 Eu tenho um palpite
 Eu tenho um palpite
 Eu tenho um palpite.

 Não.

 É quase tudo que me sai à cabeça,
 Quando o bauzinho faz os sons graves
 Virarem , no ar, signos misteriosos,
 Ou ostenta , de próprio significado
 Um ainda mais misterioso signo :
 Um sorriso.

 O bauzinho se deixa levar pelo embalo saboroso
 Da noite de festa,
 Mas sou , de fundo orgulho,
 O conhecedor primo dos seus segredos.

 Segredos esses que atraíram um certo
 Curioso
 A fuçar-te as dobradiças
 Atrás das respostas às próprias inquietações da vida
 Dentro de um bauzinho
 Sem tranca,
 Mas com singular fecho.

 Não tenho sua chave,
 Não o controlo,
 Mas torno um prazer da vida
 Fazer o bauzinho gargalhar,
 Para que seu interior eu veja.
 Não é tão raso quanto o mesmo se imagina,
 Guarda em si profundas
 Forças,
 Fraquezas,
 E um mundo tão em si
 Que não vejo o Baú como uma coisa,
 Mas
 Sim
 Algo em si,
 Que sempre guarda o mais essencial caráter humano,
 E que não pode ser apenas a caixa de Pandora,
 Mas a própria Pandora :
 Única,
 Primeira,
 Magnífica.

sábado, 4 de julho de 2015

A Razão da Justiça.

"Era uma nação muito engraçada,
 Só tinha um Rei, que sábio de berço
 Devia sempre ser, não por família,
 Mas por escolha de um Destino fanfarrão.

 A cidade crescia mais e mais
 Em torno dos três Centuriões de Ouro,
 Que informavam a decisão do universo
 Para o pequeno povo.

 Não tinham rostos, os monólitos dourados;
 Somente um espaço para as palavras.
 Uma de cada vez e as três juntas.
 Do rosto de cada Centurião, o veredicto
 Da boca de cada Rei, a interpretação.

 Rei Edvardo, desde pequeno criado para ser Rei,
 Livros de legislação e filosofia ainda muito jovem
 Estudos ao invés de anedotas,
 Tirou-se o açúcar da infância
 E se acrescentou a gosto o ferro das leis.
 A receita correta para servir um tirano à moda.

 Os centuriões se levantam da pose estática
 E põe-se de pé a anunciar as palavras já escolhidas,
 Por ninguém sabe quem, mas precisamente
 Como o carrasco ao réu.
 Nos visores dos capacetes das estátuas vivas aparece :
 JORQUÈ - VIRGO - MORTEM

 A Ágora estava em pânico.
 As três palavras pareciam centenas,
 Pois pareciam detalhar cada condição
 Do que seria uma sentença final.

 "O Cavaleiro escuro, Jorqué.
 Aparece sob a constelação de Virgem,
 Semeia horror como quer,
 As mulheres morrem de vertigem,
 As crianças morrem de pé."

 Assim era um poema popular daquele povo,
 Que não apreciava cantigas de amor,
 Só lamentos de almas perdidas
 E choros de almas banhadas em dor.

 O Rei chegou ao seu ápice,
 Filosofou e maturou a resposta celestial:
 Exigiu as virgens da cidade
 Para completar o ritual,
 Ritual de libertação de seu povo,
 Com a bênção do Universo,
 Que, como dizia o sábio Rei;
 Clama seu sacrifício carnal.

 O povo entregou ,sem demora, as humildes jovens,
 Nunca prontas ao destino injusto;
 E trancafiadas foram
 Nos aposentos do Rei.

 Na noite do sacrifício, uma confissão dura :
 Rei Edvardo e uma das jovens, Temys, a cega; estão apaixonados,
 Deitaram-se pela manhã
 E arrependeram-se quando viram o fatal presságio,
 Do reflexo das chamas da fogueira nas armaduras dos Centuriões.
 O inferno viria da justiça imparcial, pensara Edvardo.
 E estava certo, o monarca.

 O dia seguinte se deu com o sofrido povo castigando
 Não o promíscuo e irresponsável Rei,
 Mas atirando pedras na jovem que ia ser sacrificada,
 Troçando-a como 'prostituta cega'.
 O povo tomava aquele ato de ódio
 Contra uma deficiente e adolescente menina,
 Por que dizem que prender o ódio faz mal ao coração,
 Mas descarregá-lo no Rei
 Faz mal aos bolsos.

Noites belas costumam ser também, artistas;
E aquela noite decidiu desenhar
Traços de Cavaleiro Negro.
 Jorquè entrou sorrateiro na cidade e seu diabólico corsel
 Cavalgava cidatela adentro,
 Com seu jóquei despedaçando pelas ruas
 Tudo que era vivo e de carne,
 Pintando os muros e estradas
 De vermelho.

 Corpos de homens, mulheres e crianças
 Se misturavam aos pedaços no chão;
 Os que sobreviviam se escondiam em abrigos subterrâneos
 E clamavam a qualquer coisa que pudesse ouvir
 Que a noite acabasse de vez.

 O cavaleiro e seu cavalo iam a trote procurando
 Pelo resto de cidadãos que ainda vivessem,
 Pois a sede de sangue desse demônio encarnado
 Ainda estava começando.
 E fora atiçada quando vira na Ágora,
 Uma figura encapuzada se postava de pé,
 Quase como desafiando Jorquè.

 O Diabo de malha preta botou o cavalo a galope rápido,
 Reto em direção à vítima.
 Ia implacável e quase desesperado.

 A figura de capuz sacou uma singular espada,
 De forma ligeira passou a lâmina no torso do cavaleiro,
 No exato momento em que este estava com sua espada no alto,
 Passando a galope.

 O povo, incrédulo chegava perto do corpo partido do cavaleiro,
 E depois olhara para seu benfeitor, que permanecia parada
 No mesmo lugar, com a espada abaixada,

 A incredulidade tomava conta daquela gente,
 Não pela morte do Diabo,
 Mas por terem sidos salvos
 Por uma prostituta cega,"